E se, nas próximas eleições, uma maioria silenciosa que não é feita de agricultores, produzir resultados de continuidade destas políticas?
E se o grupo agrícola conseguisse já, na rua, a queda de um governo, coisa não querida pela tal maioria silenciosa que só se expressa daqui a uns anos?
Na verdade, se a "democracia" se dá na rua, e não na urna, porquê esperar por esta?
Por outras palavras: como pode exprimir - se a "democracia", nos intervalos entre a sua expressão solene, a eleição? Como é que a "arma do povo", o voto, se transforma de espingarda de um tiro (eleitoral) em fuzil de repetição (sempre que preciso)?
Os grandes acontecimentos, sobretudo os mais dramáticos para as comunidades, trazem sempre à superfície velhos problemas da filosofia, e da história das ideias políticas.
Quando reflectimos sobre as revoltas no mundo islâmico vemos às vezes a expressão: "esperemos que a liberdade não traga o caos". Faz-me logo lembrar a apologia de Sócrates, por Platão, formulada muito antes de Cristo. E um raciocínio essencial: o de que a ausência de leis - o caos - pode ser pior do que a presença de leis injustas.
Da parte de alguém que, como Sócrates, desafiou em vida todas as leis de Atenas, parece uma reflexão estranha.
O que acontece com uma lei "injusta", isto é, reconhecida como inválida por uma pessoa, ou por um grupo (digamos, a política agrícola comum europeia, ou os decretos de emergência, no ordenamento egípcio)? Enquanto durar, ofende e causa sofrimento aos que a consideram injusta.
E o que acontece no caos? Sem normas gerais e abstractas, sem poder acima dos indivíduos, sem autoridade que regule as massas, triunfa a rua. E quem triunfa na rua? Os mais fortes. Os que gritam mais, os que estão mais organizados, os que são fisicamente mais capazes, até os que manejam melhor as suas armas.
Ora, o triunfo dos mais fortes é tão injusto como a lei injusta.
Pode até ser mais injusto, se a injustiça da lei ofender só um pequeno grupo, e o caos agredir a maioria.
A propósito da revolta da rua árabe, falámos de emendas piores do que os sonetos. Importa hoje ver a outra face: a do imperativo moral da violência. Em 514 antes de Cristo, Hiparco, co-senhor de Atenas, foi assassinado por um grupo de notáveis, comandado por Armódio e Aristogítones. Há uma grande discussão sobre os reais motivos do golpe de Estado: inveja, sede de poder, conflitos sentimentais e económicos, "contradições" entre segmentos governantes, divergências doutrinais? Certo é que a morte entrou na história como o primeiro caso de tiranicídio.
Hiparco pode ter sido esclarecido mecenas, governante representativo e ponderado, mas na lenda aparece como um ditador morto por "causa justa".
Pode haver momentos em que o grupo homicida age em nome próprio, afirmando fazê-lo ao serviço de superiores interesses. Lembremos que, ao derrubar a "monarquia corrupta" do rei Idriss, em 1 de Setembro de 1969, o grupo de oficiais "nasseristas" de Kadafi (quase todos já desaparecidos, ou subalternizados) afirmava encarnar a "vontade do povo" e a "determinação da nação".
O problema é precisamente este. E se o tirano for morto por falsas causas, ou por uma clique que pretende apenas instalar outro déspota, qualquer que seja a sua forma?
Na morte de Júlio César, os conspiradores terão gritado "sic semper tyrannus" ("assim sempre aos tiranos"). Com o cadáver do imperador nos braços, Marco António (pelo menos na potente caricatura de Shakespeare) terá sugerido que os verdadeiros monstros seriam os assassinos, vestidos de cidadãos honrados. E não nos esqueçamos que o mesmo brado contra a tirania foi lançado pelo assassino de Abraham Lincoln. Lincoln, o inspirador de Obama. Lincoln, o libertador - por mão militar e guerra civil interposta - dos negros americanos.
Mas sabemos, de uma longa lista de pensadores e actores desde a Idade Média, dentro e fora da Igreja, de S. Tomás a João de Salisbúria, dos Monarcómacos a Milton, que há casos de tirania demonstrada, sedimentada, aumentada, em relação à qual a revolta pelas armas é o menor mal.
Se o crime continuado está no trono, o crime da rua pode ser desculpado, ou atenuado, ou exculpado. Sobretudo se (e é um "se" vital) o revoltoso tiver o máximo pudor, e a maior preocupação, e extremo cuidado, em não repetir os métodos daquele que se derruba.
Hoje, os jovens árabes; amanhã, os agricultores europeus? Eis a questão. Pode dizer-se, provisoriamente, que as massas árabes estão nas ruas, porque não há eleições. E que os agricultores europeus não passam das pedradas à revolução, porque podem votar.
Mas e se a mudança de política é urgente, e a possibilidade de uma mudança eleitoral só ocorre daqui a uns anos?E se, nas próximas eleições, uma maioria silenciosa que não é feita de agricultores, produzir resultados de continuidade destas políticas?
E se o grupo agrícola conseguisse já, na rua, a queda de um governo, coisa não querida pela tal maioria silenciosa que só se expressa daqui a uns anos?
Na verdade, se a "democracia" se dá na rua, e não na urna, porquê esperar por esta?
Por outras palavras: como pode exprimir - se a "democracia", nos intervalos entre a sua expressão solene, a eleição? Como é que a "arma do povo", o voto, se transforma de espingarda de um tiro (eleitoral) em fuzil de repetição (sempre que preciso)?
Os grandes acontecimentos, sobretudo os mais dramáticos para as comunidades, trazem sempre à superfície velhos problemas da filosofia, e da história das ideias políticas.
Quando reflectimos sobre as revoltas no mundo islâmico vemos às vezes a expressão: "esperemos que a liberdade não traga o caos". Faz-me logo lembrar a apologia de Sócrates, por Platão, formulada muito antes de Cristo. E um raciocínio essencial: o de que a ausência de leis - o caos - pode ser pior do que a presença de leis injustas.
Da parte de alguém que, como Sócrates, desafiou em vida todas as leis de Atenas, parece uma reflexão estranha.
O que acontece com uma lei "injusta", isto é, reconhecida como inválida por uma pessoa, ou por um grupo (digamos, a política agrícola comum europeia, ou os decretos de emergência, no ordenamento egípcio)? Enquanto durar, ofende e causa sofrimento aos que a consideram injusta.
E o que acontece no caos? Sem normas gerais e abstractas, sem poder acima dos indivíduos, sem autoridade que regule as massas, triunfa a rua. E quem triunfa na rua? Os mais fortes. Os que gritam mais, os que estão mais organizados, os que são fisicamente mais capazes, até os que manejam melhor as suas armas.
Ora, o triunfo dos mais fortes é tão injusto como a lei injusta.
Pode até ser mais injusto, se a injustiça da lei ofender só um pequeno grupo, e o caos agredir a maioria.
Dilemas das revoltas (II)
A propósito da revolta da rua árabe, falámos de emendas piores do que os sonetos. Importa hoje ver a outra face: a do imperativo moral da violência. Em 514 antes de Cristo, Hiparco, co-senhor de Atenas, foi assassinado por um grupo de notáveis, comandado por Armódio e Aristogítones. Há uma grande discussão sobre os reais motivos do golpe de Estado: inveja, sede de poder, conflitos sentimentais e económicos, "contradições" entre segmentos governantes, divergências doutrinais? Certo é que a morte entrou na história como o primeiro caso de tiranicídio.
Hiparco pode ter sido esclarecido mecenas, governante representativo e ponderado, mas na lenda aparece como um ditador morto por "causa justa".
Pode haver momentos em que o grupo homicida age em nome próprio, afirmando fazê-lo ao serviço de superiores interesses. Lembremos que, ao derrubar a "monarquia corrupta" do rei Idriss, em 1 de Setembro de 1969, o grupo de oficiais "nasseristas" de Kadafi (quase todos já desaparecidos, ou subalternizados) afirmava encarnar a "vontade do povo" e a "determinação da nação".
O problema é precisamente este. E se o tirano for morto por falsas causas, ou por uma clique que pretende apenas instalar outro déspota, qualquer que seja a sua forma?
Na morte de Júlio César, os conspiradores terão gritado "sic semper tyrannus" ("assim sempre aos tiranos"). Com o cadáver do imperador nos braços, Marco António (pelo menos na potente caricatura de Shakespeare) terá sugerido que os verdadeiros monstros seriam os assassinos, vestidos de cidadãos honrados. E não nos esqueçamos que o mesmo brado contra a tirania foi lançado pelo assassino de Abraham Lincoln. Lincoln, o inspirador de Obama. Lincoln, o libertador - por mão militar e guerra civil interposta - dos negros americanos.
Mas sabemos, de uma longa lista de pensadores e actores desde a Idade Média, dentro e fora da Igreja, de S. Tomás a João de Salisbúria, dos Monarcómacos a Milton, que há casos de tirania demonstrada, sedimentada, aumentada, em relação à qual a revolta pelas armas é o menor mal.
Se o crime continuado está no trono, o crime da rua pode ser desculpado, ou atenuado, ou exculpado. Sobretudo se (e é um "se" vital) o revoltoso tiver o máximo pudor, e a maior preocupação, e extremo cuidado, em não repetir os métodos daquele que se derruba.